sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

O Fantasma do Ano Novo

 


Por Luiz Carlos Lisboa


A marcha eterna do tempo infunde um certo mal-estar na alma do homem, e poucas vezes ele encontra esse fantasma quanto nas celebrações do Ano Novo. Se as festas de Natal caíram sob o domínio de Mercúrio, o esperto e atarefado deus do comércio, os festejos do réveillon correm por conta de Baco e do contemporâneo Momo. Esses dois gordos comandam todos os espetáculos cuja função principal seja o esquecimento da "dura realidade" - qualquer coisa dolorosa a ser olhada de frente. Compreende-se que a celebração de um novo ciclo solar seja acompanhada de esperança, alegria, meditação. Estranho é que ela seja frenética e - por que não confessar? - um tanto desesperada, como a cada ano é mais evidente. Essa ansiedade é fácil de explicar: naquele momento, para um grande número de pessoas, o tempo resvala por nós mais perceptivelmente, subtraindo alguma coisa em nossa existência.

O ano não morre no último dia de dezembro, mais do que em qualquer outro dia do ano, é verdade. Mas a convenção que se armou em torno daquele dia predispõe os espíritos à observação do fenômeno. Os instantes de transição entre um ano e outro são tensos. As pessoas têm a noção vaga de que é preciso aproveitar alguma coisa, depressa, antes que ela acabe. Por isso há uma certa pressa no ar, uma precipitação num rumo desconhecido, um desejo incontido de viver como nunca se viveu antes. Então, cada minuto é precioso e toda distração é desperdício. Em nosso íntimo, repetimos as últimas palavras de Elizabeth I, no leito de morte: "Todos os meus bens em troca de um pouco mais de tempo". Pouco depois, eis que voltamos à rotina, ao estado de espírito normal, e o conhecido mal-estar do réveillon se desfez.

Para enfrentar o fenômeno, as pessoas usam os meios inadequados de costume. Bebem demais, comem e dançam em excesso, vibram numa inquietação permanente - abrem o leque das sensações diante dos próprios olhos, escondendo esse extraordinário problema do tempo, incômodo e fascinante. O começo de um ano novo convida não exatamente a um balanço geral do que já aconteceu, ou a uma especulação sobre o que poderá acontecer amanhã, mas à observação dessa coisa que se pode chamar tempo psicológico. Somos todos fugitivos do tempo. De fato, só vivemos no presente, neste instante preciso em que percebemos isso. O que fomos antes não está mais aqui, em forma real e concreta. O que seremos no futuro é mera expectativa, exercício infantil de adivinhação. Assim, só existimos aqui e agora - e jamais estamos nesse presente real, mas refugiados na memória e na imaginação. Esse conflito e essa contradição atravessam nosso espírito por meio do simbolismo do Ano Novo.

O mal-estar que muitos experimentam nos instantes finais do ano pode ser explicado pelo confronto a que são levados os que preferem dourar a pílula e voltar os olhos para paisagens mais amenas. Vislumbrar não é ver, evidentemente. O rápido vislumbre de uma vasta realidade produz uma ligeira inquietação, que logo que cuidamos de aplacar com os nossos recursos naturais, nossos tóxicos e barulhos salvadores, luzes, cores, risos, entorpecimento. No outro dia tudo terá voltado à placidez costumeira, e não haverá muito mais que uma dor de cabeça a curar. O desagradável encontro com o tempo - com o presente, dizendo melhor - será logo esquecido, com os providenciais recursos da fantasia. 

As relações do ser humano com o tempo são velhíssimas e foram sempre conflitantes. Heráclito de Éfeso lembrava que "não se pode banhar duas vezes no mesmo rio", uma vez que a vida é toda ela mobilidade permanente. Plotino referia-se ao tempo como uma imagem da eternidade, contraditando Aristóteles, que baseava suas teorias na observação do mundo físico. Para Santo Agostinho não há senão o "presente do passado, o presente do presente e o presente do futuro". O primeiro é a memória, diz o santo, o segundo é a percepção e o terceiro é a espera, a expectativa. Essa meditação sobre o tempo não foi ultrapassada - em sua lúcida profundidade - pelos filósofos que vieram depois. A obra de Henri Bergson, Duração e Simultaneidade, coloca-a em termos modernos mas não a contesta. Para o pensador francês, o tempo real é a duração - não o tempo dos físicos e matemáticos - que, se identifica com "a intuição do espírito pelo próprio espírito".

O homem oscila como um pêndulo, entre a memória e a fantasia, isto é, entre o passado e o futuro, sem qualquer escala no presente. O estar aqui e agora exige coragem, por que coloca o ser humano diante da sua problemática real. A verdade de cada indivíduo deve ser encontrada no presente - e essa conclusão não exige muito esforço. Aquele movimento pendular é um evidente esquema de fuga. O símbolo do Ano Novo é claro demais para não ser percebido - ou intuído, mesmo obscuramente. O velho é substituído pelo novo, o passado cede lugar ao futuro. O presente é aquele instante, aquele momento crucial que é preciso evitar, aquela aresta onde se encontra as vastas superfícies do tempo. O réveillon lembra o encontro que todos evitamos. Porque essa lembrança é dolorosa e deve ser ignorada em nome de uma doce paz ilusória, é preciso comer, beber, dançar, cantar, gritar, esquecer. Até que o instante perigoso fique para trás, o dia amanheça e nós possamos retomar nosso ritmo cego.

In Olhos de ver Ouvidos de Ouvir, Editora Difel, 1977, p.145/146.