segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Histórias de Natal

 


Susis resistem meio século, assim como tudo que elas representam. Minhas duas únicas bonecas, guardadas como relíquias de um tempo de "fartura" geral, em que o esforço para comprá-las foi gigantesco diante de todas as outras reais necessidades da família....em lembrar que a minha cartinha para o Papai Noel era quilométrica, até o dia em que descobri, aos cinco anos, a verdadeira identidade do "bom velhinho" e após a decepção, resolvi nunca mais pedir nada, fui pra rua brincar com os meninos que ficava mais barato:.bola de meia, bola de gude, pião, pula-pau, carrinho de rolimã e pipa solta no ar....custava quase nada ser feliz e não causar constrangimentos aos meus pais, já tão combalidos com as agruras de uma vida com tantas restrições orçamentárias.

E diante desse cenário acabei desgostando de bonecas e de festejos natalinos, esses últimos quase sempre marcados por conflitos ocasionados pelo uso abusivo de álcool que invariavelmente era a rota de fuga do meu pai, que celebrava com os amigos durante o dia e quando chegava em casa já não sobrava contentamento nem sobriedade, apenas gritos e xingamentos....nada que não estivéssemos acostumados. Hoje eu compreendo as circunstâncias que forjaram o seu comportamento, suas possibilidades e limites. 

E assim o tempo foi passando e felizmente tive a oportunidade de resgatar o Natal e toda a sua simbologia após o nascimento dos meus filhos. Faço questão de preservar os rituais e a mítica envolvendo o Homenageado, enfeito a casa e o coração, de igual forma preparo o espírito para sintonizar com a energia que emana do divino e do sagrado e assim comungar com aqueles que,  como eu, acreditam no Advento, na Boa Nova e na força da fé e na esperança em dias melhores.

Bem aventurados os que estão abertos e disponíveis para o chamado, para o convite diário de olhar o mundo com os olhos da primeira vez.

Para quem tem coragem de enxergar a vida assim, todo dia é Natal, tempo de celebração, renascimento e perdão. 





segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Somos hóspedes

 


A existência é de uma precariedade sem tamanho, pois no mesmo instante em que nascemos já estamos a morrer um bocadinho a cada dia e sem parar, na certeza de que partiremos como chegamos: sem nada levar.
E mesmo diante do efêmero, da provisoriedade do ser e estar, muita energia vital é desperdiçada em nome do ter (bens, títulos, status), sem muita preocupação com a essência, com o bem viver em termos de experiências, sentimentos, sensações e emoções.
E nesse ciclo evolutivo somos apanhados de surpresa (pobres e nus, como bem disse Fernando Sabino)  quando compreendemos que nada é nosso e tudo nos é emprestado. 
Somos hóspedes da nossa própria casa, proprietários transitórios durante o tempo que tivermos de vida. Somos hóspedes do Planeta Terra e do corpo material (vestes físicas) com o a qual atravessaremos a existência. 
E após a nossa partida para outra dimensão continuaremos hóspedes nas lembranças daqueles que com quem tivemos uma convivência mais próxima.....saudades, fotos e um legado feito de momentos (nem sempre felizes), fragmentos de uma ausência quiçá sentida.
E pouco a pouco os ciclos vão se encerrando, as inexoráveis mudanças se impõem (físicas, de endereço, de interesses), além da diminuição paulatina da bagagem (dos pesos, das expectativas, do tônus muscular) até que venha o último suspiro.
Errática e errante, vou seguindo viagem com a consciência que as perdas e os necessários abandonos que fui protagonizando durante a jornada fez-me o que eu sou e tornou-me única, disponível e  presente no aqui e no agora.

"E se um dia hei de ser pó, cinza e nada, que seja minha noite uma alvorada, que eu saiba me perder para me encontrar..." (Florbela Espanca).



sábado, 14 de novembro de 2020

Alma de pipa avoada


Ela é tão livre que um dia será presa.

-Presa por quê?

- Por excesso de liberdade.

- Mas essa liberdade é inocente?

-É. Até mesmo ingênua.

- Então por que a prisão?

- Porque a liberdade ofende. 

Clarisse Lispector


Em homenagem a todos os seres libertos por natureza, cuja essência ignora padrões externos e opiniões alheias.

É evidente que essa liberdade cobra um preço alto, mas pago feliz, pois não há nada mais importante do que a minha paz de espírito. Migalhas não alimentam minha auto estima, pois sei do meu valor e não espero de ninguém o reconhecimento dos meus feitos e tão pouco dos meus desacertos, apesar de saber que não faltam dedos apontados e línguas afiadas pela crítica vazia.

Seguindo em frente e sem tempo para perder com perfumarias. O tempo urge e é precioso demais para ser desperdiçado com banalidades. Os ponteiros correm depressa e de encontro às prioridades, pedindo bagagem leve e alma disponível. 

"É que eu tenho alma de pipa avoada".  

        

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Um terço (1/3)

 Texto escrito para o concurso literário: 60 anos do MPDFT, eu faço parte dessa história


 

Um Terço...sim, é exatamente isso que você está pensando! Na semana que antecedeu minha prova oral para o cargo de Promotor de Justiça Adjunto do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios eu rezei o Terço Milagroso de Nossa Senhora Aparecida, de quem sou devota desde a meninice.

Era tudo ou nada, caso de vida ou morte, pois eu tinha acabado de me casar e buscava estar próxima do meu amado, então Promotor de Justiça no Estado de Goiás.  Meu coração estava apertado, pois sabia o quanto essa aprovação era importante, não só por realizar o meu sonho de ser aprovada e exercer a função que me levou a prestar novo vestibular e ingressar na Faculdade de Direito, onde eu acabara de concluir o curso de Letras, mas para poder vivenciar a plenitude de um amor que se iniciou na entrada da carceragem da Delegacia de Polícia de uma aprazível cidade do interior de São Paulo.

Ele, o Oficial de Justiça da Vara Criminal da Comarca e eu a Delegada de Polícia e Diretora da Cadeia Pública local. O alvará que ele trazia libertou um detento e aprisionou o meu coração...e lá se vão 26 anos de uma paixão avassaladora e que deitou frutos no solo fértil do Centro-Oeste. A passagem pela Polícia Civil teve um propósito: reencontrar minha alma gêmea e, no final de 1996, tudo o que eu mais queria era que essa união realmente desse certo, pois nessa altura ele era o mais novo e cobiçado integrante do Parquet Goiano.

E a Santa Milagrosa teve então um duplo desafio: além de me arrumar um marido naquela altura do campeonato, aos 30 anos do segundo tempo, quando a peleja já era dada por perdida por boa parte da família, ainda foi conclamada a auxiliar-me na aprovação em dificílimo certame do MPDFT e cumprir a promessa que fiz a mim mesma quando participei pela primeira vez como jurada do 1º Tribunal do Júri do Estado de São Paulo e sorteada, fui enfeitiçada pela fala do então Promotor de Justiça, Dr. Guerra Ahmed e ali vaticinei o meu destino: vou ser Promotora de Justiça!

E deu certo!!!! Quem entra na Capela dos Milagres da Basílica de Nossa Senhora Aparecida vê logo duas fotos no teto: uma do meu casamento e outra da minha posse, ocorrida em 05 de fevereiro de 1997. E de lá pra cá sou só gratidão e procuro atuar de forma a fazer valer a honrosa missão que me foi confiada, pois não é por acaso que uma menina nascida na periferia de São Paulo chegaria em tão distinta posição, senão fazer valer a vez e a voz daqueles que desconhecem seus direitos, lutar pela prevalência da lei acima de interesses outros que não a justiça.

Um terço...sim, eu faço parte de um terço dos 60 anos do MPDFT, com muito orgulho! Já são mais de 23 anos de dedicação a essa Instituição que me acolheu e me deu todas as condições de concretizar meus ideais de justiça e de servir ao outro, aquele que é a razão de ser e de existir de todos os que assumiram o corajoso compromisso de promover a justiça.

Não tem sido fácil se manter no ringue e lutar o bom combate, desde minha primeira lotação, na promotoria de justiça criminal de uma circunscrição regional relativamente distante, até a presente data, em que sou titular de um ofício especializado, me deparo com situações que denotam a urgência de resgatarmos a credibilidade da sociedade nas instituições e nos seus integrantes. Há também uma crise de valores que precisa ser revertida e só através de um Ministério Público forte, independente e atuante seremos capazes de entregar os resultados que a comunidade do Distrito Federal espera.

Um terço...não!!!! Somos o Terço da Armada, o corpo de guerreiros do Ministério Público Brasileiro e não vamos baixar a guarda. E que as batalhas travadas nesses 60 anos de MPDFT sirvam de orgulho para aqueles que já não estão mais no front e estímulo para tantos outros que, como eu, não desistem de empunhar a espada.

 

terça-feira, 14 de julho de 2020

Impressões








"Não existe o esquecimento total: as pegadas impressas na alma são indestrutíveis"
(Thomas De Quincey) 

Faço parte de uma legião de obreiros que procura deixar o melhor de si por onde passa, colocando o coração em tudo o que faz, por mais simples que seja a tarefa. Entre erros e acertos vamos ajustando as engrenagens e renovando a fé de que as sementes lançadas encontrarão solo fértil e temperatura adequada para romperem em um novo amanhã. 
E a nossa pegada segue sendo impressa pelo caminho, um legado que fala muito sobre valores, princípios, crenças e prioridades eleitas entre incontáveis outras possibilidades que foram ficando para trás, as não escolhas. "Somos quem podemos ser, sonhos que podemos ter".
Que ao final sejam essas marcas sinais de uma vida plena de significados, que restem as lembranças de um vento suave, uma brisa perene que envolve e aquece tudo em volta.  
    



domingo, 17 de maio de 2020

Inquietação



Impossível ignorar os efeitos que essa pandemia tem causado no psiquê das pessoas, não só em razão do isolamento imposto, mas sobretudo por serem confrontadas diariamente com a inexorável finitude que nos aguarda, verdade que evitamos considerar, vivendo cada dia como se eternos fôssemos.
Em razão das limitações determinadas pelas autoridades nesse momento tão conturbado, muitos tem aproveitado esse período de recolhimento para organizar o armário, a casa, a vida, os pensamentos, os sentimentos....um tipo de tarefa que nos impõe um olhar pra dentro, um labor quase sempre solitário e que desperta múltiplas sensações e inquietações.
Encapsulados em nós mesmos por conta das contingências, começam os incômodos e questionamentos, aquela voz que procurávamos sempre abafar no dia-a-dia, ocupando-nos com inúmeros afazeres, agora dobrou a acústica e até quem está de fora escuta os ruídos e as murmurações, transmutados em desassossegos, insônia, lágrimas e dores somatizadas.
Eu não resisto a esse turbilhão de emoções, antes me deixo levar por essa onda avassaladora de autoconsciência, um chamado para que eu me dê conta, uma vez por todas, da minha real essência.
Os desconfortos que surgem invariavelmente sinalizam para a existência de espaços e situações em que eu não me encaixo mais, uma dedução lógica de que eu não contenho e nem sou contida pelas circunstâncias e acontecimentos que fluem dessas esferas. O que antes fazia algum sentido pra mim, agora me é indiferente. E não há nada de errado nisso. Estranho seria se eu não me desse o direito de evoluir, encerrando ciclos e inaugurando novas fases do viver, essa experiência alquímica e inquietante que exige de nós o estar disponível todos os dias para a novidade do mundo.                    

        

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Signo da alma




Sentimentos expressos em letras, benditas palavras que me revelam e consolidam o que eu sou e como eu sinto a vida em todas as suas perspectivas.
Os signos que desnudam os porões do meu inconsciente e constroem uma escada de acesso ao mundo externo, pontes de conexão com o outro e o seu complexo universo de entendimento.
É preciso uma dose extra de coragem para tamanha exposição, colocar-se na vitrine e sob o escrutínio alheio, lentes que nem sempre alcançam a clareza do objeto em evidência ou da mensagem implícita na sua concepção, por conta de inúmeras circunstâncias que embaçam o olhar acostumado à rotina dos iguais.
Desde menina tenho paixão pela arte da escrita e agradeço à minha mãe por ter me apresentado o alfabeto aos 5 anos e ter me iniciado nessa caminhada fascinante pelo universo das letras, que culminou com a escolha da minha primeira graduação universitária, nos idos de 1986.
E a jornada continua prazerosa, sendo que mais recentemente a escrita tem sido um exercício de catarse pra mim, onde dou forma aos inúmeros pensamentos (nem sempre agradáveis) que brotam em profusão dentro de mim, uma libertação do peso que às vezes oprime o meu coração. E assim sigo dando forma a sensações muitas vezes desconhecidas, vou construindo caminhos e recortando paisagens mentais, transformando significados, sem receio de trazer para a luz o que se esconde nas camadas mais profundas do meu ser.
Como bem disse Cardinale, "quando escrevo, eu me inscrevo. Fico impressa, concretizada, ganho corpo, forma. E é esse outro corpo-eu-forma que entrego - me entrego - inteira para o leitor. Não é pouca coisa".
Sobre o tema Freud afirmou que "para muitas pessoas, o texto não flui. Ele sai receoso, com medo do ato de imprimir-se. Pode tratar-se, neste caso, de um medo maior de concretizar-se e entregar-se. Medo da possibilidade de o outro nos pegar, analisar, perceber nossos defeitos. Trata-se de uma espécie de desnudar-se e colocar-se diante das outras pessoas como objeto de análise".
Sou adicta em escrita e, em tempos que a trama comunicacional supervaloriza a imagem e o som, com gatilhos rápidos e armadilhas que prendem a atenção do receptor sem levá-lo, necessariamente a algum tipo de reflexão que faça sentido em sua vida, faço questão de mergulhar fundo nas palavras, tecendo meu casulo, minha inexorável mortalha.     
 
 


domingo, 26 de janeiro de 2020

Eis que tudo se fez novo



Há uma latente fertilidade nos terrenos arrasados, revirados e pisados. Muita vida ávida para ressurgir, com a força inimaginável da natureza. 
Os especialistas em transformar campos vivos em terra devastada são passageiros e por mais que destruam tudo ao redor, novas sementes chegarão com o vento e, no tempo certo, povoarão de vida a charneca ressequida.  
E nesse momento de reencontro comigo compreendo que a força de regeneração da terra é a mesma da vida, quando se tem fé.
A propósito, destaco um trecho do maravilhoso livro da Clarissa Pinkolas Estés, "O Jardineiro que tinha fé", que bem ilustra esse sentimento sobre "o que não pode morrer nunca":

"Enquanto caminhávamos, titio matutava: 'Já ouvi pessoas perguntando onde fica o jardim do Éden. Ora! Qualquer lugar que se pise nesta terra é o jardim do Éden. Toda esta terra, por baixo dos trilhos de trens e das rodovias, na sua roupagem gasta, do seu entulho, de tudo isso, é o jardim de Deus - ainda com o frescor do dia em que foi criado. É verdade que em muitos lugares o Éden está enterrado e esquecido, mas o jardim pode ser restaurado. Onde quer que haja terra sem uso, mal utilizada ou exausta, o Éden ainda está bem ali embaixo....
E o que não pode morrer nunca? É aquela força de fé que já nasce dentro de nós, que é maior do que nós, que chama as novas sementes para os lugares áridos, maltratados, abertos, para que possamos nos ressemear. É essa força, na sua insistência, na sua lealdade a nós. No seu amor por nós, nos seus meios, na maioria das vezes, misteriosos, que é maior, muito mais majestosa e muito mais antiga do que qualquer outra jamais conhecida".

Assim que, se alguém está em Cristo, nova criatura é; as coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez novo.
2 Conríntios 5:17