quinta-feira, 26 de abril de 2012

Olhe para o céu.....


Naqueles dias em que estou cansada, desanimada com a vida, desencantada com as pessoas, olho para o céu e tento respirar pra dentro de mim toda a luminosidade das estrelas, o calor do sol, a liberdade dos pássaros, o mover singelo e silencioso das nuvens, o mistério dos ventos.....quero tudo em demasia, tudo que não tenho quando enxergo a vida com os olhos do corpo....afinal, nesta altura da vida já ando com as vistas cansadas.....duas cirurgias para corrigir miopia, hipermetropia, astigmatismo e presmiopia acabaram por interfirir na minha acuidade visual.....as moscas volantes, então, as tenho como fadas a rodopiar a minha volta....resumindo, só estou aguardando a chegada da catarata pra situação embaçar de vez. rsrsrsrsrsrs.....enquanto isso, vou trupicando por aí, vendo de  tudo um pouco, e quase sempre mal.... 
Falando em vistas cansadas, segue abaixo um lindo texto sobre "o olhar sem ver", uma boa reflexão sobre a cegueira que nos acomete com frequencia e nos impede de admirar as mais belas paisagens, aquelas que nos aproximam mais do divino e do sagrado, instâncias tão massacradas pela lente da razão.    

 
Vista cansada
Otto Lara Resende


Acho que foi o Hemingway quem disse que olhava cada coisa à sua volta como se a visse pela última vez. Pela última ou pela primeira vez? Pela primeira vez foi outro escritor quem disse. Essa idéia de olhar pela última vez tem algo de deprimente. Olhar de despedida, de quem não crê que a vida continua, não admira que o Hemingway tenha acabado como acabou.


Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta. Um poeta é só isto: um certo modo de ver. O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê não-vendo. Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia, sem ver. Parece fácil, mas não é. O que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina é como um vazio.


Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta. Se alguém lhe perguntar o que é que você vê no seu caminho, você não sabe. De tanto ver, você não vê. Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo hall do prédio do seu escritório. Lá estava sempre, pontualíssimo, o mesmo porteiro. Dava-lhe bom-dia e às vezes lhe passava um recado ou uma correspondência. Um dia o porteiro cometeu a descortesia de falecer.


Como era ele? Sua cara? Sua voz? Como se vestia? Não fazia a mínima idéia. Em 32 anos, nunca o viu. Para ser notado, o porteiro teve que morrer. Se um dia no seu lugar estivesse uma girafa, cumprindo o rito, pode ser também que ninguém desse por sua ausência. O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem. Mas há sempre o que ver. Gente, coisas, bichos. E vemos? Não, não vemos.


Uma criança vê o que o adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo. O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de fato, ninguém vê. Há pai que nunca viu o próprio filho. Marido que nunca viu a própria mulher, isso existe às pampas. Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos. É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença.

Texto publicado no jornal “Folha de S. Paulo”, edição de 23 de fevereiro de 1992.