Segue artigo escrito em parceria com a querida Elizabeth Amarante, que retrata o nosso dia-a-dia na sala de audiências.
Inicia-se mais uma sessão, digo, audiência no 1º Juizado Especial
Criminal de Brasília, cuja competência abrange crimes e contravenções em
que a pena máxima em abstrato não ultrapasse 2 anos, os chamados
delitos de pequeno potencial ofensivo, além de casos residuais
envolvendo violência doméstica e familiar.
É explicado às partes que, num primeiro momento, será tentada uma
conciliação entre ambas, em outras palavras, um acordo que coloque fim
ao problema. É nesta oportunidade que temos o primeiro contato com o
conflito, suas vertentes e seus protagonistas. Deixamos de lado o
caderno processual, fechamos o Código Penal e passamos a exercitar a
escuta ativa, com mente e coração abertos.
Ao contrário do que via de regra ocorre com os operadores do Direito,
que buscam convencer pela oratória hermética, diante dos que desconhecem
os labirínticos caminhos do discurso jurídico, nós, nas "sessões" do 1º
Juizado Especial Criminal, praticamos mais a escutatória, como diria o
Prof. Carlos Ilha. A tudo ouvimos, sem pré-conceitos e respeitando o ser
que ali desnuda toda uma vida, quase sempre de amarguras e misérias.
Nos colocamos no lugar do outro e, não raras vezes algumas histórias
reabrem em nós antigas feridas, nos remetem a traumas ainda não
superados.
Como é difícil deixar de lado o papel e as vestes talares, muitas vezes
usadas para esconder o que há de humano em nós e criar uma percepção
questionável de respeito, autoridade e sabedoria. Enxergar vidas por
detrás de cada página dos autos é algo transformador . Não é só mais um
caso, é um pedido de socorro. A transgressão é uma forma de chamar a
atenção para algo que não está bem resolvido e, cabe a nós esta
percepção e a adoção de uma postura que transforme aquela dor em algo de
útil para o ser e para o grupo social em que ele está inserido. Não é
só aplicar a lei, é fazer dela um instrumento de concretização de
direitos e de crescimento pessoal.
Depois de um manhã de audiências, vamos para a casa e levamos juntos de
nós aqueles olhos desesperados que suplicavam uma internação, outros,
tristes, desertos de emoção, alguns despedaçados pela agressão sofrida,
tanta dor e desencontro que não encontram o lenitivo esperado na
prestação jurisdicional.
Parecem nos dizer: ‘Excelências, nós queremos mais, precisamos de mais, não nos ignore mais'!.
Dentro de tudo isto, lembramos de um ditado de nossos antepassados: ‘A
cada dia o seu mal', fazendo da principal meta, seguir um passo depois
do outro.
A dificuldade em descortinarmos as emoções dos que buscam na sala de
audiências o lenitivo para as dores da alma, é nos depararmos com as
nossas próprias emoções, diante da imprescindível razão que deve nos
socorrer. Em certos momentos, na catarse de uma audiência, sentindo-nos
mais próximas das dores e problemáticas alheias, a razão nos diz que não
devemos estarmos tão próximas a ponto de nos paralisarmos ou nos
apaixonarmos pelas causas, embotando nossas decisões.
A catarse dá espaço ao surgimento de insights e daí as decisões
permitem-nos o direcionamento destas vidas em conflitos a ponto de
percebermos que tal direção significa o ‘marco zero', o recomeçar, o
pegar o ‘trem noturno para Lisboa' (Pascal Mecier). Dizemos nestes
momentos: 'Saia desta situação, veja a que ponto você fez concessões,
porque estas não são uma só, elas replicam-se, até o sentido do self
desaparecer'. E a resposta, em alguns casos, vem na afirmação ou
pensamento:Tem as Doutoras vidas tão confortáveis! É em verdade, na
essência do assim entender, o desconhecimento, ou o não querer ver, que
somos os seres que sofrem as mazelas e as felicidades do viver, sendo
que o que nos é impresso em nossos atos são as lembranças de nossos
afetos e dissabores, quando então, nós próprias nos deparamos com a
dificuldade em atuar e ser aquilo que pretendemos para o outro, se
naquela situação estivéssemos.
Como dito acima, os traumas não superados, ressurgem quando, naquela
situação a ser debatida em audiência, é ou foi vivida por nós,
aplicadores do Direito.
A vitória sentida, neste momento, é estarmos não só acolhendo aquele
ser, mas também unindo-se a ele na dor que também nos é própria.
Portal Clube Jurídico do Brasi